Por Agnes Patias - psicóloga
Logo pela manhã eis que surge, depois
de gostosos bocejos, dois olhinhos fúlgidos, no canto da janela, a avistar a
vida.
Enquanto a imaginação fértil se
prepara para as peraltices do dia, o corpo pede o alimento, muitas vezes negado
pela própria condição humana, a qual está inserida.
Porém, sem desistir, desperta uma
criança que está a produzir vidas por entre os vieses de raios de sol que
teimam em filtrar luz, através das frestas do casebre.
Tudo é motivo para fazer desta fase, a
cada momento, uma explosão de cores expressa em movimentos e o retorno a um
novo dia proporciona estas possibilidades, no seu universo infantil.
Anestesiada pelas dores sofridas do
dia a dia, revira-se em malabarismos, aparentando coragem suficiente para
suportar todos os medos que se apresentam, como se fosse apenas mais um desafio
a ser transposto.
Esta criança, como todas as outras de sua
idade, também fabrica sonhos, e como num passe de mágica transforma estes em
realidades, através das brincadeiras, repletas de práticas que aliam a fantasia
ao sabor do imaginário.
Curiosa e sem pressa, risonha e
descalça, fabrica seus brinquedinhos fornecidos pela natureza e transformados
em relíquias, num mundo de fadas, bruxas e duendes que a transformam em herói,
talvez como a única forma de obter reconhecimento. Ao lado, por vezes, observa
que outra reproduz em dramatizações as cenas de violência, banalizada por um
cotidiano hostil, imitando o tinir de balas de fuzis que escancaram as
asperezas, pelo alvo da morte.
Na escola da vida, ela vai construindo
saberes que, armazenados, constituirão a sua trajetória existencial, já que o
sistema educacional formal ainda não se encontra preparado para acolher suas
demandas e acaba negligenciando os direitos básicos fundamentais assegurados em
lei.
Ao cair da tarde que se aproxima, lá
está novamente ela, a criar, a “criançar”, levando na bagagem um bocado de
esperanças de que sua linguagem simples, leve, terna, fluida, seja compreendida
de outro modo, pelo mesmo sistema que hoje submete, escraviza, aniquila e
corrompe.
Quanto ao amanhã, resta o desejo
constante de que o mundo lhe reserve mais ternura e proteção, com
possibilidades de criação e manutenção de vínculos familiares e sociais, além
de referenciais positivos e legítimos, sem roubar-lhe a infância nem o
deslumbramento pela vida, bem como o afago da ingenuidade que lhe é
peculiar.
Quem
dera criança sedenta de vida, que o novo amanhecer trouxesse consigo um decreto
de extinção das mazelas sociais que amedrontam a humanidade, e a plateia que
tudo assiste, adormecida, pudesse enfim, acordar, desvelando-se por trás das
cortinas da apatia e do despudor.
Enquanto isso, à espera destas
mudanças ainda não efetivadas, a criança adormece, “criançando”, dotada de
encantamentos, onde repousa seus sonhos.