domingo, 13 de outubro de 2013

CRIANÇAndo

         
 Por Agnes Patias - psicóloga                               

          Logo pela manhã eis que surge, depois de gostosos bocejos, dois olhinhos fúlgidos, no canto da janela, a avistar a vida.
          Enquanto a imaginação fértil se prepara para as peraltices do dia, o corpo pede o alimento, muitas vezes negado pela própria condição humana, a qual está inserida.
          Porém, sem desistir, desperta uma criança que está a produzir vidas por entre os vieses de raios de sol que teimam em filtrar luz, através das frestas do casebre.
         Tudo é motivo para fazer desta fase, a cada momento, uma explosão de cores expressa em movimentos e o retorno a um novo dia proporciona estas possibilidades, no seu universo infantil.
          Anestesiada pelas dores sofridas do dia a dia, revira-se em malabarismos, aparentando coragem suficiente para suportar todos os medos que se apresentam, como se fosse apenas mais um desafio a ser transposto.
          Esta criança, como todas as outras de sua idade, também fabrica sonhos, e como num passe de mágica transforma estes em realidades, através das brincadeiras, repletas de práticas que aliam a fantasia ao sabor do imaginário.
          Curiosa e sem pressa, risonha e descalça, fabrica seus brinquedinhos fornecidos pela natureza e transformados em relíquias, num mundo de fadas, bruxas e duendes que a transformam em herói, talvez como a única forma de obter reconhecimento. Ao lado, por vezes, observa que outra reproduz em dramatizações as cenas de violência, banalizada por um cotidiano hostil, imitando o tinir de balas de fuzis que escancaram as asperezas, pelo alvo da morte.
        Na escola da vida, ela vai construindo saberes que, armazenados, constituirão a sua trajetória existencial, já que o sistema educacional formal ainda não se encontra preparado para acolher suas demandas e acaba negligenciando os direitos básicos fundamentais assegurados em lei.
           Ao cair da tarde que se aproxima, lá está novamente ela, a criar, a “criançar”, levando na bagagem um bocado de esperanças de que sua linguagem simples, leve, terna, fluida, seja compreendida de outro modo, pelo mesmo sistema que hoje submete, escraviza, aniquila e corrompe.
          Quanto ao amanhã, resta o desejo constante de que o mundo lhe reserve mais ternura e proteção, com possibilidades de criação e manutenção de vínculos familiares e sociais, além de referenciais positivos e legítimos, sem roubar-lhe a infância nem o deslumbramento pela vida, bem como o afago da ingenuidade que lhe é peculiar. 
            Quem dera criança sedenta de vida, que o novo amanhecer trouxesse consigo um decreto de extinção das mazelas sociais que amedrontam a humanidade, e a plateia que tudo assiste, adormecida, pudesse enfim, acordar, desvelando-se por trás das cortinas da apatia e do despudor.
          Enquanto isso, à espera destas mudanças ainda não efetivadas, a criança adormece, “criançando”, dotada de encantamentos, onde repousa seus sonhos.